o sorriso do bar

Bruna Moreno
4 min readJun 18, 2018

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Eu já lhe contei que o conheci na mesa do bar? Se de cerveja em cerveja o papo desenrolava, foi de copo em copo que eu me enrolei a ele.

São de noites como aquela que a vida é feita. Foi como se o universo tivesse aberto um portal na Terra para que eu pudesse me sentir mais viva, e desceu esse menino. Tão expresso em si mesmo que assusta. Suas falas eram moldadas por um humor tão natural que meu riso virou reflexo.

Ali tinham muitas gargalhadas, ânimos exaltados, gritos, muita conversa — claro que nenhuma como a nossa — falas altas, nostalgias relembradas, e até o frio, que há muito não vinha, se fez presente. Mas um sorriso verdadeiramente genuíno, simples e nu, só ele foi capaz.

Ele estava com cheirinho de protetor solar, mas não tinha Sol. E o que é que tem? Ele sempre faz o que ele quer. Decisivamente extremo em convicções terrenas e cheio de ideologia. Ele se apega ao conteúdo, no que as coisas têm a dizer. E nem se eu tentasse muito o compreenderia. Nem ele se entende, e ele gosta disso. Talvez se entender seja muito chato, a complexidade parece encantá-lo. Estar longe do tédio deixou de ser um objetivo pra ser um dom natural.

E ele é poeta sabia? Apesar de eu nunca ter lido nada do que ele escreveu, eu o vejo poeta, ele exala poesia, ele é feito de rima, feito de metáforas e significados. Todo escondido por entrelinhas e segredos de estrofe. Ele é rima livre e métrica livre, dono do próprio poema que é a vida.

E como é engraçado o jeito que ele fuma aquele cigarro, é um jeito só dele. Ele me disse que queria parar de fumar. Que já tinha, uma vez, tentado. Ele quis voltar e voltou. Eu também. Ele, por que quis e pronto. Eu, por que cessaria qualquer promessa para vê-lo sorrir ao bar mais uma vez.

Certo dia ele me disse que gostava da nossa musicalidade, mas acho que ele nunca reparou na melodia que tem sua presença. Se ficassem mais de 3 horas conversando com ele sem parar, se reparassem em como ele era o brilho do bar e em como ele segurou minha mão e me pediu um beijo…

Mas eu aposto que ele não se lembra de metade das coisas que eu não me esqueci. Eu aposto que ele não se lembra da cor da minha calça, do cheiro do meu perfume ou da minha risada, porque ele não tinha eternizado aquele momento como eu fiz.

E eu queria que ele se lembrasse de mim, deitada do seu lado, correndo a ponta dos meus dedos pelo seu cabelo, contando as pintas das suas costas, enquanto jogávamos conversa fora e ele me deixava reclamar sobre a vida só pra me lembrar de que eu não estava sozinha. E que continuar não precisava ser tão difícil.

Queria que ele lembrasse como eu gargalhava com as suas palhaçadas, e de todas as vezes que eu busquei conforto nas suas palavras em tempos de caos e turbulência por que eu sempre fui tempestade e eu achava que ele era calmaria.

Queria que ele lembrasse as primeiras conversar: sobre nossas famílias, cores favoritas e diretores de cinema. Do nosso segundo encontro, quando todo mundo torcia pela gente e sua mão ainda descansava na minha perna e ele me olhava com tanto carinho. Todas as nossas primeiras vezes, que não foram suficientes para sua fome de curiosidade e a minha de saudade.

Mas eu aposto que ele não se lembra de metade das coisas que eu não me esqueci.

Eu ainda me lembro de todas as datas, e todas as suas manias. Da vez que eu subi sozinha pra casa com os olhos cheios de lágrimas e não contei a ninguém. E todas as vezes que eu dormi no seu peito, do beijo na testa, os textos que eu escrevi, as músicas que ele me mostrou, e todas as vezes que eu o encontrava sem querer.

Gostaria de poder dizer que ao longo dos meses eu tentei fugir dele, mesmo que estivesse em uma jornada cujo objetivo era perdê-lo. Ele se tornou, acima de tudo, um grande amigo e toda vez que eu sentia seu coração batendo próximo ao meu existiam milhões de palavras na ponta da minha língua a serem ditas, mas parecia que seus olhos me deixavam sem fala.

Meus sentimentos estavam estampados na minha cara toda vez que ele me encarava por mais de cinco segundos e eu nunca soube esconder. Ele notou e preferiu ficar em silencio. Eu não falei, porque não precisava ser recíproco.

A sensação era de que ele tracejava caminhos por mim, como se eu fosse uma rodovia desconhecida e sem mapa. Mas acho que de tento se perder, ele quis voltar pra casa e eu nunca fui seu lar.

Com o tempo, esquecerei dos detalhes da mesma maneira que ele o fez: os seus olhos castanhos serão apenas olhos castanhos e não um reflexo do que poderíamos ter sido.

Assim como já não me lembro de como é segurar sua mão ou do seu cheiro e de como era tê-lo nos meus lençóis. Ou de como era ouvir meu nome sendo pronunciado pelo seu sotaque.

E daqui a um tempo, ao esbarrar com ele pelos corredores da vida, eu vou dizer que está tudo bem se a gente assumir que falhou. Que as pessoas infelizmente complicam relações que deveriam ser leves e simples. Que eu errei com ele, mas que ele, igualmente, errou comigo. E que nessa da gente jogar a culpa um em cima do outro, vai existir um momento no qual vamos entender que está tudo bem desviar a rota do orgulho para tentar encontrar um equilíbrio. Que não seremos como antes, mas que possamos nos perdoar e, quem sabe, posso vê-lo sorrir de novo na mesa do bar.

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Bruna Moreno
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Written by Bruna Moreno

Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento. Escrever é preciso. (Clarice Lispector)

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